* Juvenil Gonçalves Costa |
TIO MELOA
por Juvenil Gonçalves Costa
por Juvenil Gonçalves Costa
juvenilcosta@gmail.com
Tio
Meloa, 54 anos, sujeito pacato, tinha pouca escolaridade, era meio
atrapalhado e não gostava de tomar banho. Dizem que durante a sua
existência apenas tomou banho por duas vezes: a primeira foi quando ele
nasceu e a segunda quando pegou uma chuva, na ocasião o guarda-chuva
estava cheio de buracos. Usava uma calça frouxa atada por um cordão
substituindo o cinto. Criado até os 25 anos de idade pela sua madrinha, a
senhora Maria Pistolão que se tornou viúva por 08 vezes e separada
judicialmente do último esposo. Casou-se pela primeira vez com um padre
depois com um pastor evangélico e, por último, com um macumbeiro. A
respeito do último matrimônio, ela teve uma grande frustração. A
decepção foi tanta que, depois dessa, ela só se casaria se fosse com o
Saci Pererê porque se ele, o Saci, desse um chute no traseiro dela, ele é
quem cairia. Segundo informações ela matou, com sua pistola
enferrujada, três pessoas por estas tentarem tirar suas vestes, à força,
para descobrir qual era o seu verdadeiro sexo. Ela usava bigode e
carregava consigo o lema: “com mulher de bigode nem o diabo pode”.
Mas Maria Pistolão não era má e tinha muito apreço ao seu filho
adotivo, Tio Meloa, tanto que o apelidou de Meloa logo que nasceu. O
motivo do apelido se deu porque a barriga dele era grande que se
assemelhava a uma melancia redonda, mas na verdade o nome meloa foi o
que mais colou porque a sua barriga de tão cheia parecia que a qualquer
momento iria espocar como a tal fruta da roça conhecida em alguns
lugares como melão de massa ou melão de papoco.
Em meio a todas as controvérsias da sua personalidade, Tio Meloa
demonstrava que tinha afinidades com o estilo de vida caipira e a
filosofia dos atrapalhados. Recitava poemas, criava frases meio
desarrumadas e, às vezes, indecifráveis. Ele era do tipo que escolhe a
hora certa pra ensinar a coisa errada, isso dependendo da forma de quem
interpretasse os seus ensinamentos. Maria Pistolão sempre escutava os
seus conselhos e fazia o contrário. Ela tinha o entendimento de que ele
era chuva sem água e sol sem calor; casa sem teto e céu sem estrelas...
assim como um bezerro desmamado. Diante de todas essas adversidades ele
não se sentia inferior a ninguém, pois pessoas de alta escolaridade
escutavam-no e até anotavam algumas das suas citações. Era motivo de
satisfação e orgulho da parte dele.
Vivia no povoado Japãozinho município de Gonçalves Dias até tomar
conhecimento de que no Socorro, distrito de Governador Eugênio Barros,
havia uma jovem muito bonita (como a Iracema do romancista cearense José
de Alencar, uma virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais
negros que a asa da graúna e os olhos mais escuros que uma noite sem
luar). Ela era uma donzela que ainda estava no “caritó” (expressão
popular muito antiga usada no Socorro pra dizer que uma moça velha ainda
não arrumou marido). A única informação que ele tinha a respeito da
vida particular dela era de que ela vivia sozinha, não tinha pai nem
mãe, mas que descendia de uma família de boa índole e de pessoas
trabalhadoras. Não sabia ele que ela, decerto, desconhecia a data do seu
nascimento, não tinha sequer a certidão de nascimento e nem sabia ler
nem escrever. Ao ser perguntada sobre a data do seu nascimento, ela
respondia que não sabia, mas que a sua vizinha de 90 anos afirmava que
ela nasceu num ano de um forte inverno que produziu uma grande safra de
melancias.
Mas
todas essas qualificações não tinham nenhuma conotação negativa para
Tio Meloa que logo após se cientificar realmente da existência da moça,
ele toma a decisão de ir ao encontro dela e fazer-lhe uma proposta de
união matrimonial, porém necessitava de fazer algumas compras para
apresentar-se muito bem diante dos olhos dela e para causar uma boa
impressão à família da sua pretendida.
Passou
a noite sonhando com esse encontro e, antes do raiar do dia, foi à
feira do mercado central de Presidente Dutra e comprou alguns
apetrechos: camisa de listras, calça (estilo moletom), um par de sapatos
(estilo cavalo de aço), um desodorante Leite de Rosas, um relógio caixa
d’água, um pacote de cuecas — daquelas furadinhas popularmente
conhecidas como “cueca de copo” e uma mala de pau do tamanho de um jacá.
Pegou o ônibus Expresso Líder e chegou ao Socorro às 10:30h da manhã.
Para chegar até a casa dela, pegou carona numa bicicleta que tinha uma
frase escrita na lameira dianteira: “sou feio mas sou feliz”. E na
lameira traseira: “Sou muito mais feio do que mordomo de filme de
terror, mas não é da sua conta”. Entrou na casa da jovem sem pedir
licença, arriou a bagagem e, sem dar sequer um bom dia, foi logo
dizendo:
— Sou feio quanto um mordomo de filme de terror, tu também é.
— Ninguém te quer. A mim também não.
— Por que a gente não ajunta os terém?
— Daqui de dentro eu não saio mais. Vou morar contigo.
Ela
meio tonta sem entender bem o que estava se passando e sem conhecer
aquele moço estranho ficou quase muda, apenas fez uma pergunta:
— Tu é casado?
— Sou casado e sou viúvo ao mesmo tempo. Quer dizer, sou e não sou as duas coisas! — respondeu ele.
— Eu não estou entendendo. Tu pode explicar?
—
Eu me casei com minha cunhada por engano. Na hora do casamento trocaram
os documentos: o meu irmão entregou os meus documentos pra moça do
cartório pensando ser os dele. Eu vim descobrir esse engano depois de
três anos. Quando botei a mão na minha bolsa notei que havia perdido
todos os meus documentos, daí eu fui a uma rádio e mandei o locutor
anunciar: “atenção, atenção. Eu perdi a minha bolsa com todos os meus
documentos dentro. Quem achar será bem recompensado”. Pois é, aconteceu
assim e agora minha cunhada morreu e eu sou as duas coisas: casado e
viúvo. Mas o dotô adevogado já tá cuidando de fazer o divórcio e o
óbito.
Depois
disso não houve mais diálogo e o silêncio fez com que Tio Meloa
acreditasse que sua “cantada” havia funcionado e que a moça já seria a
sua esposa. Ele ficou a primeira noite, a segunda, a terceira e depois
de uma semana eles eram de fato marido e mulher.
Com
seis meses de vivência, já era bastante conhecido e popular. Ele dizia a
todos que já era mais conhecido no Socorro do que leite onça. E quando
demorava ir à rua do Comércio falava aos populares em alta voz: “Eita que faz tempo que eu não ando na rua do Comércio, hoje de noite”. E
assim com seus dizeres sem pé e sem cabeça, desfrutava da amizade das
pessoas e do carinho dos familiares. Sempre gostava de tomar umas
cervejas no bar Arranca Tampo. Todas as vezes que ia ao banheiro
(localizado no fundo do quintal) “tirar a água do joelho” (urinar)
educadamente pedia licença para a dona do estabelecimento: “dona, me dê licença que eu vou mijar no seu fundo”.
Todo
mundo quando bota a cabeça sobre o travesseiro para dormir pensa logo
no que vai fazer no dia seguinte, e sua companheira sempre preocupada
quanto ao trabalho para garantir o pão de cada dia, fez-lhe
imediatamente uma pergunta curta e grossa: como e onde trabalhar para o
sustento dos dois. Ele sabiamente respondia com suas frases
mirabolantes:
—
Não se preocupe, muié, eu vim morar aqui no Socorro não é porque eu
vejo os outros viverem. E aqui no Socorro vou trabalhar de qualquer
coisa, não vou perder tempo porque cada minuto que passa é um minuto a
mais e se eu não voltar é porque eu não fui. E pra começar a ficar bom
pra nós dois, lá no Japãozinho eu tenho uma boa criação de galinhas.
Pode acreditar. Só num chiqueiro, eu tenho sete capão... tudo fêmea...
morreu um, mas restou oito.
Ele
já notara que no Socorro e adjacência havia uma praga de ratos que nem
gato nem veneno chumbinho davam conta e diante dessa oportunidade de
ganhar um bom dinheiro, fundou a segunda metalúrgica do Socorro (uma
fábrica de ratoeiras) sendo que a primeira foi uma fábrica de
lamparinas, de propriedade do Iran, filho do seu Janjão.
Tio
Meloa vendeu tanta ratoeira que quase exterminou os ratos do município
de Eugênio Barros. Às custas da miséria dos ratos, Tio Meloa tirava o
sustento da sua pequena família e deixava alguns gatos passando fome.
A sua esposa aos pouco foi conhecendo-o e querendo saber mais sobre a família dele:
—Tu ainda tem mãe? — perguntou ela.
—
Tenho não... mas se minha mãe não tivesse morrido ainda hoje ela estava
viva. Posso te afirmar que a morte dela foi inédita. Vou te contar: “A
minha querida mãezinha estava dormindo e quando ela acordou, estava
morta, quer dizer, ela nem viu quando morreu”. Mas a vida é assim
mesmo. Um dia um cara me fazia tantas perguntas sobre minha mãe que
fiquei zangado e lhe roguei uma praga: “Olha seu miserávi, um dia tu
também vai morrer e... tomara que seja logo nem tão cedo nem tão breve”.
Tio
Meloa já estava bem adaptado ao povoado e às pessoas. Foi adquirindo
crédito junto aos botecos e até aos agiotas. Com o lucro da venda das
ratoeiras, foi obtendo os objetos da sua casa. Preferencialmente ele os
comprava daqueles vendedores crediaristas que andam de porta em porta.
Depois
de dois anos de união, muita paz, muito amor e muita cumplicidade entre
ambos, parecia que não havia mais nenhum segredo ou nada que um não
soubesse do outro. Esse compartilhamento de sentimentos e intimidades se
deu até que surgiu, numa manhã de domingo, um cobrador com uma fichinha
na mão. Bateu à porta e perguntou:
— Bom dia! Aqui é que mora o senhor Pedro Malazarte?
Ela respondeu: — Aqui
num mora nenhuma pessoa com esse nome não. Eu nunca ouvi esse nome em
toda a minha vida. Não conheço nenhum Pedro Malazarte, seu moço.
—
Ué... mas aqui na minha ficha de cobrança consta que o senhor Pedro
Malazarte comprou duas panelas e duas colchas de cama e o endereço é
esse aqui. — Disse o cobrador meio confuso.
Nessa hora Tio Meloa estava lá no fundo do quintal aguando as plantas, ouviu toda a conversa e gritou:
— Muié, Pedro Malazarte sou eu, muié! Tu num sabe o meu não?
Ela surpreendida diz:
— Mas tu também nunca me disse o teu nome!
Ele arregala dos dois olhos e diz:
— Mas tu também nunca me perguntou...!
Criticas e sugestões: juvenilcosta@gmail.com
*Juvenil Gonçalves, escreve poemas, contos e é colaborar de alguns jornais comunitários.
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